Um patife oportunista

A notícia da morte do Cidadão do Mundo Eduardo Nascimento despertou em mim memórias muito especiais. Naquele ano de 1967 estava em Portugal, mais concretamente na cidade do Porto, e assisti em directo na RTP quer à sua vitória no Festival RTP da Canção, quer posteriormente à sua participação no Festival da Canção da Eurovisão, com a canção “O vento mudou”.

Por Carlos Pinho

S e bem que hoje em dia a vitória do Eduardo Nascimento no Festival RTP da Canção seja comentada e interpretada como uma grande referência histórica, a verdade é que na altura, deixou muito “boa gente da Metrópole” incomodada, dando azo a comentários racistas, tais como aqueles que eu presenciei num sarau de um liceu no Porto nesse mesmo ano de 1967.

No entanto, o referido Cidadão do Mundo, Eduardo Nascimento (era assim que ele se considerava), acabou por sofrer um agravo bem pior na sua terra natal, com a sua proposta de Hino Nacional de Angola, que foi maldosamente aproveitada por terceiros, como seguidamente se refere.

No Jornal de Angola do passado de 25 de Novembro apareceu uma notícia seráfica sobre a autoria do Primeiro Hino de Angola que, não se sabe bem como, deixou de o ser. Eufemismos!

Aliás, o músico e compositor Carlos Lamartine já se queixou, por mais de uma vez, das patifarias que os autores “supostamente reais” (o sublinhado é meu) do Hino de Angola fizeram ao não reconhecerem que tal obra foi fruto de um trabalho colegial. Mas, como em qualquer história que nunca começou bem, a verdade é ainda mais tenebrosa que a realidade, que se perscrutava nos comentários amargos do Carlos Lamartine (ver Club-K) ou na notícia do JA do passado 25 de Novembro.

Segundo um artigo de Ilídio Manuel no Club-K, o líder da comissão, Manuel Rui Monteiro, do Ministério da Informação, encarregada de seleccionar a letra e música do Hino de Angola, acabou por se aproveitar do trabalho que tinha sido declarado vencedor e que era da autoria de Eduardo Nascimento (letra) e de Ana Maria de Mascarenhas (música), e assumiu-se como um dos co-autores do dito hino.

Ora este modus operandi já vinha do governo provisório, que antecedeu a independência de Angola. Com efeito, no seu livro “Angola. Anatomia de uma Tragédia” o general Silva Cardoso, Alto-Comissário de Angola para o período de transição e como tal chefe do respectivo governo, refere-se assim ao então Ministro da Informação Manuel Rui Monteiro, e passo a citar “…apetecia-me pôr-lhe um certo número de questões e, principalmente, apontar-lhe o dedo acusador por ser um dos grandes responsáveis pelo clima de guerra, insegurança, terror, vandalismo que se vivia naquela terra…”, texto este extraído da página 570 da 7ª edição da obra citada, publicada em Maio de 2009.

Ou seja, o cavalheiro era useiro e vezeiro em patifarias e hoje em dia olhando para as suas crónicas das quintas-feiras no Jornal de Angola, onde se toma ares de kota esclarecido, dando conselhos aos mais novos, aparecem pérolas como aquela da crónica de 19 de Setembro passado, onde refere que no tempo colonial havia em Luanda um bom serviço de transportes públicos, os machimbombos, ao passo que hoje em dia é a miséria que se sabe, esquecendo-se obviamente de dizer que ele foi um dos grandes responsáveis pelo descalabro ocorrido em Angola. Ele e o seu partido, que como tem sido regra, pretende que seja confundido com o povo e o estado angolano, esquecendo-se deliberadamente das várias correntes de pensamento e opiniões que constituíram e constituem a sociedade civil do estado angolano. Essa responsabilidade moral e cívica pelo desprezo a que o partido que governa o país há décadas votou à sociedade civil, continua a ser premeditadamente esquecida pelos detentores do poder.

Mas as pérolas continuam, por exemplo no passado dia 13 de Fevereiro, ou seja, na semana passada, o nosso articulista voltou à carga, agora preocupado com a fome do povo. Pois um dos principais responsáveis pela fome do povo angolano é precisamente V. Exa., que tudo fez para colocar o MPLA no poleiro. O senhor tem somente o que o senhor merece. Já, por outro lado, o povo angolano certamente não merecia tamanho destrato. Não adianta vir agora o nosso kota dar uma de moralizador, visto que a meu ver está mais para rato que abandona o navio, do que referência moral. Até há poucos meses, o senhor e muitos outros diziam ámen à “cleptoliderança” do país. Não vos cabia um feijãozinho no dito cujo. Agora como alguém bradou alto e bom som que o “rei ia nu” então sim: Há valentes e ah valentes!

É o director de serviço na folha de couve do regime, são as crónicas semanais de um kota dito esclarecido, enfim, é ver quem fala mais alto contra o passado recente de gamanço institucionalizado.

Com efeito ao fim de mais de quatro décadas, apareceu muita gente a constatar e a escrever sobre o óbvio, e passo agora a referir o exemplo concreto de uma crónica deveras interessante no Novo Jornal de 15 de Novembro passado e intitulada “Até onde irá o cinismo”. O seu autor esconde-se atrás das eventuais culpas do governo português, por este ter privilegiado os três movimentos de libertação, deixando de lado a sociedade civil. Pois, não foi de facto o governo português que deixou de lado a sociedade civil, foram os três movimentos que se impuseram como os únicos interlocutores válidos na discussão do futuro de Angola, ignorando essa sociedade civil. O governo português foi na altura chantageado por esses movimentos, e logicamente saltou fora da composição. Portugal trazia nas costas o opróbrio de 500 anos de colonialismo e, portanto, “deu o ouro ao bandido”. Criou-se uma ponte aérea para Portugal, e muita gente capaz abandonou Angola, para gáudio dos libertadores esclarecidos.

E a incompetência e a desonestidade de quem tomou o poder em Angola, fez o resto, ou seja, deu no que hoje é por demais evidente.

Não se acertaram e pelos vistos não se pretendem acertar contas com o passado. O caso do Hino Nacional é apenas uma pequena constatação para que, quem lê estas linhas, perceba a estrutura moral dos que se dizem ou se consideram referências nacionais de Angola. O 27 de Maio de 1977 e o varrer de tudo para debaixo do tapete é mais do mesmo, se bem que muitíssimo mais vergonhoso e abjecto.

Platão no seu diálogo Protágoras disse, “O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, e das coisas que não são, enquanto não são”, mas o senso comum também ensina que todas as coisas que um homem fez, faz ou fará, são e serão a sua medida como pessoa. Por isso não é por um dado cavalheiro ter escrito belas obras literárias que poderá ser considerado um ser humano de referência, se os seus actos, noutra dimensão da sua vida, levam ao menosprezo por parte dos outros homens. Isto infelizmente é recorrente em Angola. O caso do primeiro presidente da República de Angola é outra situação exemplar, que já não vale a pena escalpelizar mais, por tudo já ter sido dito e clarificado. Mas os líderes angolanos, olhando para os diversos casos pouco recomendáveis que têm aparecido na curta história do país, fizeram todos gala em esquecer este princípio básico. Enterraram alegremente a cabeça na areia e procederam como se as mais variadas patifarias nunca tivessem acontecido. Contudo, a sociedade angolana precisa de passar por uma catarse e exorcizar todos estes fantasmas malditos. Mas temo que, infelizmente, não chegue lá.

Os estragos criados no país por mais de quatro décadas de corrupção, nepotismo e incompetência, fazem com que muitos mais velhos olhem para a última década do regime colonial com alguma saudade. Não tinham liberdade. Mas tinham trabalho, havia fábricas que já manufacturavam muitos dos produtos de primeira necessidade de que o país então precisava, havia uma assistência médica e medicamentosa bem superior à que hoje é providenciada pelos hospitais públicos, a qualidade do ensino público também era muito superior à actual. A produção agrícola colocava Angola numa posição de referência a nível mundial, como no caso do café, do algodão, do arroz e das bananas, por exemplo. A pecuária também tinha uma produção significativa, por exemplo, a produção de ovelha caracul no Namibe era então uma referência. Não eram rosas, era sim o regime colonial a “dar corda aos sapatos” com medo de perder a jóia da coroa. Era uma aproximação oportunista e pragmática desse regime, mas que, com correcções adequadas, devia ter sido mantida na transição de regime. Hoje em dia, muitos desses mais velhos analisando de modo simplistas as suas recordações, lembram-se daquilo que então tinham e comparam com as faltas de hoje. A comparação é certamente injusta, mas é o que fica da espuma dos tempos.

Contudo, a estupidez, a cupidez e desonestidade de “muito boa gente”, tal como nos exemplos acima citados, levou ao descalabro de todos nós conhecido. Nenhum, repito, nenhum dos três movimentos de libertação está isento de culpas, tal como o regime colonial e aqueles ligados ao MFA que com a sua subserviência a um dos movimentos com o qual ideologicamente mais se identificavam, minimizaram e menosprezaram a as várias correntes da sociedade angolana, que na sua maioria estavam dispostas pragmaticamente a abraçar um novo modus vivendi, para continuarem a viver e a trabalhar num país que também consideravam seu. Angola é um estado com várias nações, e todo o seu contexto actual e futuro, deverá e terá de ser encarado nesta lógica. Cabinda é um caso paradigmático. Mas não o foi, na altura da descolonização e independência que se seguiu, e como tal Angola continua e continuará a pagar um preço elevado. E não adianta chorar sobre os maus portugueses que vão até Angola fazer as suas patifarias. Quem os leva para Angola, são concretamente maus angolanos, de um modo geral ligados ao partidão.

Na sua loucura e oportunismo desavergonhado, os políticos angolanos preferiam enterrar orgulhosamente tudo, seguindo pseudolições de gente, que reputo terem sido oportunistas e recalcados, sendo que o exemplo mais demonstrativo é o que está postulado no livro de Gerald Bender “Angola Under the Portuguese” (University of California Press) em que este autor escreve, e eu passo a citar traduzindo:

“… Este êxodo massivo dos brancos foi uma bênção mista para a República Popular de Angola. Retirou um quarto de milhão de portugueses do país, a maioria dos quais com sentimentos racistas profundamente entranhados e cuja qualidade de vida estava directa ou indirectamente dependente da exploração dos africanos. Com a sua partida foi-se uma fonte potencialmente explosiva de fricção racial. Por outro lado, o seu êxodo destruiu a economia, reduziu a extensão e eficiência dos serviços governamentais e destruiu a qualidade material da vida urbana.

Contudo, se bem que estes problemas a curto prazo sejam severos e problemáticos, eles são ultrapassáveis. Mais ainda, futuramente poderão ser uma fortuna para a República Popular de Angola, que tenham ocorrido mais cedo do que mais tarde…”

É evidente que com amigos deste calibre Angola não precisa de inimigos. De facto, com a independência, tal como ela foi levada a cabo, Angola teve uma rica bênção!

Quanto aos sentimentos racistas e potencialmente explosivos a actual lei da nacionalidade angolana é uma obra-prima neste domínio de amizade inter-racial e intercultural, os “angopulas” que o digam, excepto se forem do partidão, é claro!

Quando à ultrapassagem, a breve trecho, dos outros problemas que Gerald Bender cita, deve ser uma questão de factor de escala. Presumo que para ele “a curto prazo” seja qualquer coisa como alguns séculos. Nesses séculos que mediarão até se chegar à tal Angola com que os angolanos de bem sonham, os políticos que detêm o poder continuarão a encher-se de dinheiro que voará para o estrangeiro, e o resto do povo, a grande maioria, continuará na miséria.

Uma crónica de Emídio Fernando, editor executivo do Nova Gazeta, termina com o seguinte parágrafo:

“Mais de 40 anos depois da independência, é na “metrópole” que os angolanos procuram a dignidade e serem independentes. E isso é muito triste.”

Ou seja, a história é tão perversa que acaba por dar razão a Marcelo Caetano, Presidente do Conselho de Portugal (designação então adoptada pelo regime português para a função de Primeiro-Ministro), quando este dizia ser prematuro dar a independência às colónias, porque os africanos não estavam preparados e muitos acabariam por fugir para Portugal.

O que é indecoroso, é que o comportamento dos políticos e dirigentes angolanos acabou por dar razão a palavras facciosas e racistas do então chefe do governo colonial português. É obra! Os colonialistas agradecem! E os kotas esclarecidos choram lágrimas de crocodilo!

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